Obrigado, Doutor

 

Páginas internas da carteira do CRM

Meu pai era médico. Eu, nunca quis ser ...

Médico, para mim, quando criança, era não ter meu pai para jogar futebol no fundo do quintal, passar as férias sem ele e retirar as malas do carro, emburrado, adiando, para nunca mais, a viagem da família para Itatiaia ou São Lourenço em razão de uma cirurgia de emergência, um acidente na Dutra, uma criança doente.

Médico, eu? Nunca ...

"Quero um emprego que, na sexta-feira, coloque um aviso na porta do escritório, dizendo volto na segunda", disse a meu pai.

Muitos anos mais tarde, após perder muitos aniversários, Dia dos Pais, Dia das Mães, chegar atraso nas ceias de  Natal por culpa de plantões intermináveis na “Folha”, no “Vale” ou em outro jornal qualquer, meu pai me disse, com boa dose de ironia: "Não era você que ia trabalhar menos, ter horário certo para as coisas?" Na hora, lembrei do personagem de Humphrey Bogart ao explicar porque, afinal, escolhera Casablanca para abrir seu Rick’s Café. “Vim por causa das águas”, disse Bogart. “Mas aqui é um deserto”, respondeu o interlocutor. “Fui mal informado”, responde Bogart, na pele de Rick Blaine. Repeti a piada, com uma boa pitada de realismo. “Além disso, fui educado por um workaholic”, acrescentei. Meu pai riu. Sabia que era verdade. Ele saía de casa escuro ainda para passar revista em pacientes no hospital, iniciando uma jornada que só ia acabar lá pelas 10 da noite, no consultório. Final de semana? Era comum tratar de crianças na entrada de casa, em razão de alguma urgência, atender pais nervosos, comparecer aos hospitais, ir aos bairros visitar pacientes. Alguns, sem ter como pagar o médico, retribuíam a visita com o que tinham: pés de couve, um bolo, às vezes só um muito obrigado. “Dona abobrinha” levava uma cesta de verdura em casa, uma vez por mês. Meu pais explicava, frente ao meu espanto: “Filho, cada um paga como pode.” Eu, insistente, criança, perguntei: então, porque cobrar? “Não cobrar é uma afronta, filho. Cada um paga como pode. Todo mundo tem a sua dignidade e a gente tem que tratar todo mundo igual”, respondeu. Todo mundo é igual. Isso nunca saiu da minha cabeça. É minha pedra basilar. Meu pai foi pediatra, cirurgião de peito aberto, professor, diretor de hospital, pesquisador, fez diagnósticos pioneiros na história da Medicina. Um médico de antigamente. Menino pobre, do interior, filho de um ferroviário e de uma costureira, que lutou muito para se formar, na antiga Faculdade Nacional de Medicina, no Rio de Janeiro. Até hoje encontro gente que me diz: seu pai salvou meu filho. Ou: seu pai me tratou quando eu era criança, só ia nele. Seu pai salvou a minha vida. Gente que diz, ainda hoje, para mim: muito obrigado. Gente que eu conheço, gente que nunca vi na vida. Surgem também alguns Hélcios, batizados assim em homenagem ao doutor que foi importante para a família em alguma hora difícil. Hélcios loiros, mulatos, morenos, como eu, negros, nisseis.

Eu nunca quis ser médico, sou feliz na profissão que escolhi.

Mas tenho no meu pai, no Doutor, como eu o chamava, um exemplo, um dos raros heróis que reconheço na vida, ao lado do meu avô, José Olympio. Do meu pai não herdei a paixão pela Medicina (isso ficou para a minha irmã, Stella, uma boa médica), mas herdei outras paixões: a paixão pelas pessoas, pelo trabalho bem feito, pela família, pelo futebol, pelos livros e pelo conhecimento. Com ele aprendi que todo mundo, todo mundo mesmo, é igual, mesmo sendo todos, quase sempre, tão diferentes.

Obrigado, Doutor.


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