Velha Praga

 

Em 1914, uma autodenominada “voz do sertão” levou à seção “Queixas e Reclamações” do jornal “O Estado de São Paulo” um alerta: as matas da Serra da Mantiqueira ardiam em chamas, ateadas por um parasita da terra, o caboclo.

 A carta ganhou as primeiras páginas do “Estadão como artigo, sob o título de “Velha Praga”, e foi o ponto de partida da carreira de um dos principais escritores do Brasil nos século 20, Monteiro Lobato, então um jovem fazendeiro do município de Buquira (hoje, Monteiro Lobato), inconformado com as queimadas que varriam as encostas e os grotões da Mantiqueira. Ali também se cristalizava um preconceito: a figura do caboclo como um parasita da terra, passando os dias de cócoras, exaurindo a natureza, sem plantar um pé de couve atrás da casa. O nome dele? Manoel Peroba, Chico Marimbondo, Jeca Tatu, qualquer um, tanto fazia. Dele, vilão, caruncho da terra, nada sobra, nem uma pista, nem marca, quanto mais um sobrenome. Tentativa de decifrar o Brasil, “Velha Praga” foi o embrião de uma obra-prima, “Urupês”, lançado em 1918, mas impregnaria a obra de Lobato de um preconceito que só muito tempos depois ele se livraria, ao narrar o Jeca não como algoz, mas como vítima. 

(Mesmo assim, sejamos honestos: a figura simpática do Jeca, que chegou até nós, se deve muito mais aos filmes de Amácio Mazzaropi do que a Lobato.)

Caboclos e queimadas voltaram a dominar o debate nacional esta semana. Mas, desta vez, o caboclo não estava só. Ao lado dele surgiram os índios. Caboclos e índios, citados assim, como párias, foram apontados pelo presidente Jair Bolsonaro como as pragas responsáveis pelo aumento do número que queimadas na Amazônia e no Pantanal. “Nossa floresta é úmida e não permite a propagação do fogo em seu interior. Os incêndios acontecem praticamente nos mesmos lugares (...), onde o caboclo e o índio queimam seus roçados em busca de sua sobrevivência, em áreas já desmatadas”, disse Bolsonaro, no discurso que abriu a Assembleia Geral das Nações Unidas. O discurso de Bolsonaro foi, como esperado, uma colcha de retalhos, recheado de mentiras e meias-verdades. Mas, 106 depois, ele repetiu o mesmo mote de “Velha Praga”. Estudos e mais estudos apontam que mais de 70% dos focos de queimada surgem em grandes propriedades de terra e são motivados pelo manejo agropecuário. E a Polícia Federal informou já ter provas para indiciar fazendeiros pelas queimadas no Pantanal. Mas, 106 anos depois, continua sendo mais fácil culpar o caboclo. Caboclos e, agora, os índios. 

Lobato fez as pazes com essa visão estreita do problema ao classificar o caboclo, o Jeca, como vítima, fruto da miséria e do atraso do Brasil, gerado por um sistema político e econômico viciado. Difícil esperar um “mea culpa” desses de Bolsonaro. Para o presidente, sempre será mais fácil culpar  caboclo, o índio, o pobre. Prova que, no Brasil, a velha praga persiste e resiste ao passar dos anos. Mas, ao contrário da literatura, ela não é o caboclo, estigmatizado. A velha praga do Brasil, o parasita, o caruncho da terra, é, na verdade, o político, a orelha de pau, o pironga que, suga a Nação e pouco, ou nada, muito pouco, dá em troca. 

Pior: quem planta esse urupês é a gente, por meio do voto.     

 


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