Somos 209 milhões de médicos


Shaun Murphy para ministro da Saúde?

Já fomos assim com o futebol e, recentemente, com o Direito, quando o STF decidia sobre a prisão em segunda instância e outras questões.

Agora, chegamos à Medicina.

Depois de sermos, por décadas, o país de milhões de técnicos de futebol e milhões de magistrados a partir da era da Lava-Jato, agora somos o país de 209,5 milhões de médicos a debater, sem pudor, protocolos médicos no tratamento do novo coronavírus, uso da hidroxicloroquina contra a Covid-19, pesquisas sobre vacinas salvadoras e estatísticas sobre a pandemia. Do presidente da República ao motorista de Uber, viramos virologistas, doutores em biologia molecular, sanitaristas de mão-cheia, cada um com a fórmula para ser prescrita. Mesmo sem registro conhecido no CRM, Jair Bolsonaro festeja ter contraído a doença e continua a receitar cloroquina como panaceia universal, espécie de elixir mágico que os doutores de araque receitavam antigamente para dores estomacais, câncer e soluço. Outro dia, um motorista de aplicativo me deu uma aula sobre como o governo mascara os números da Covid-19. Como a corrida foi curta, fiquei sem entender se era para mais ou menos. Mas a convicção do motorista quase me convenceu. E como somos convictos! Um amigo, empresário, decidiu ignorar os protocolos de saúde fiel (máscaras, álcool em gel e tudo mais) às orientações de Bolsonaro de que o novo coronavírus é uma chuva que, hora ou outra, vai molhar a gente. Que beleza, pensei, não dá para usar capa ou guarda-chuva? Procurar algum abrigo se a chuva virar uma tempestade?

Tudo isso seria engraçado se não fosse trágico.



Estamos à frente de um vírus com alto poder de contágio, agressivo e contra o qual não existe vacina. No momento em que escrevo este artigo, o Brasil supera a marca de 70 mil mortes e mais de 1,7 milhão de pessoas infectadas. Tem gente, como Bolsonaro e seu histórico de atleta, que não dá a mínima. Ou usa a doença como palanque político (pior, ele não está sozinho; tem espaço para João Doria e muitos outros). O certo é que o Brasil se preparou mal para a pandemia. Mas, tudo bem. Afinal, somos um país de 209,5 milhões de médicos, cujo presidente virou garoto-propaganda de um medicamento, o governador inventou a quarentena-sanfona e os recursos da Saúde acabam no sorvedouro da corrupção. Parecemos acreditar que, como nos filmes de médico na TV –do antigo Doutor Kildare até o recente Shaun Murphy, de “The God Doctor”, sem esquecer Francisco Cuoco, em “Obrigado Doutor, série brasileira--, os fatos vão se encaixar rumo a um final feliz.

Não é verdade. Na vida real não funciona assim. 
Nem se nomearmos Shaun Murphy ou o Doutor House para ministro da Saúde. No país do Doutor Bolsonaro, a trama parece comédia, escorregada para farsa, mas é, na verdade, tragédia.

Segue o baile ...

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