Pra Frente Brasil




Algumas coisas melhoram com o tempo, como o vinho. Outras, pioram.

Nos vinhos, algumas sensações, como cheiros e sabores, só são reveladas por um vinho velho. São aromas terciários, formados durante lenta oxidação. É dentro das garrafas e dos tonéis que se forma o que os enólogos chamam de “buquê”, a personalidade do vinho, que lembra o aroma de frutos secos, amêndoas, bagaço envelhecido, tudo isso imerso em silêncio, sombras e solidão ao longo dos tempos. Poético? Sim, mas cuidado: vinhos também podem envelhecer mal, transformando, pelo contato com o ar, o que era rica bebida no mais amargo vinagre. Aí voltamos à frase inicial deste artigo, com uma explicação extra: algumas coisas melhoraram com o tempo, como o vinho; outras, pioram, como eu e Regina Duarte.

Para mim, o tempo trouxe dores que não conhecia, manias que viraram esquisitices, uma tendência à solidão.

Para Regina, que conheci como a “Namoradinha do Brasil”, o tempo trouxe o que parece ser loucura. Pensei nisso ao ver suas últimas entrevistas, de rosto crispado, corpo contorcido, olhos arregalados, falando, falando, falando coisas que pareciam sem lé nem cré, pelo menos para mim. Não vi sombra da órfã Patrícia, da aeromoça Cecília, da escultora Simone Marques, papéis da fase “soft” de Regina, que a lançaram ao estrelato. Nem da Viúva Porcina, muito menos de Malú. Regina estava mais para uma Luana Camará rendida, enfim, a sua entidade espiritual Priscila Capricce, como em “Sétimo Sentido”, última novela de Janete Clair. Nas entrevistas, Regina parece possuída. Grita, faz caretas. Do nada, canta. Depois se cala. Reclama. Reclama das perguntas. Reclama de suas próprias respostas. Parece uma atriz que interpreta drama em ritmo de comédia, samba em ritmo de valsa, Shakespeare com sotaque de vaudeville. Tenta explicar o inexplicável.

Veja bem, caro leitor, não se trata de censura ou patrulha ideológica.

Regina Duarte tem, como qualquer pessoa, o direito de pensar o que quiser e falar o que quiser. Afinal, estamos em uma democracia. Quando ela foi indicada secretária nacional de Cultura, achei natural. Quando ela aceitou, também. Se ela, convidada, achou que podia fazer um bom trabalho, boa sorte. Não torço contra, nem contra o Palmeiras (vai, Corinthians!). Ela gosta de Jair Bolsonaro? Ora bolas, problema dela. Eu não? Problema meu. E segue o baile. Simples assim? Sim, mas, na prática, não foi. Não por minha culpa. Eu esqueci de Regina. Soube depois que ela não tem mais contrato com a Rede Globo e que vem sofrendo ataques de aliados de Bolsonaro. Só vi Regina nas entrevistas recentes. E fiquei assustado. Frases sem sentido, rosto sem expressão, personagem em busca de um autor, como na obra de Luigi Pirandello. Não, um personagem em conflito.

Regina parece uma pessoa em conflito.

É possível se aliar ao atraso sem parecer retrógrado? É possível defender a tortura e a morte sem se render à violência? É possível dar as costas a amigos sem sofrer da mais irremediável solidão? É possível apoiar o “cala-boca” sem estar de braços dados com a censura? Regina está em conflito. Ela representa, para mim, uma parte dos brasileiros que vão acordar um dia e constatar: que bobagem nós fizemos. Para afastar o ruim, mergulhamos de cabeça no pior que existe na política brasileira. Para suportar isso não basta entoar a Canção do Exército, nem cantar “Pra Frente Brasil”. Temos que abandonar os personagens, aposentar Priscila Capricce e voltar a ser gente. Voltar a ser povo.

Tão diferentes, tão iguais.

Este artigo foi publicado originalmente no jornal "O Vale"

Comentários

Postar um comentário

Postagens mais visitadas