Barbárie e civilização


por Marcos Meirelles


“Ninguém ouviu; um soluçar de dor; no canto do Brasil. Um lamento triste; sempre ecoou; desde que o índio guerreiro; foi pro cativeiro; e de lá cantou. Negro entoou; um canto de revolta pelos ares; no Quilombo dos Palmares; Onde se Refugiou; Fora a luta dos Inconfidentes; pela quebra das correntes; nada adiantou”

De vez em quando, gosto de me deixar embalar pela voz de Clara Nunes, entoando o belo Canto das Três Raças, de Paulo César Pinheiro. A voz de Clara, a voz de Clementina, a voz de dona Ivone de Lara... As raízes negras do jongo e do samba, a herança cultural de milhares de africanos escravizados no espólio mais sombrio e cruel da nossa história.

Deveríamos expiar, coletivamente, este crime contra a humanidade do qual o Brasil fez parte. Em vez disso, desde sempre, tentamos varrer para o debaixo do tapete a mácula da escravidão e chegamos ao cúmulo de culpar os próprios africanos pela barbárie. 

Temo que, com o advento de uma nova  dominação bárbara a partir de 2019, aquilo que antes era apenas sugerido possa se tornar, efetivamente, a “versão oficial” para estes e outros tantos crimes cometidos ao longo da nossa história. Por isso, nunca foi tão importante respeitar o Dia da Consciência Negra, uma celebração que São José se recusou a referendar há alguns anos sob o argumento cínico de que haveria um abalo na produtividade das empresas locais (para depois criar um feriado específico municipal).

A dominação bárbara se aproxima: é chegado o tempo dos extremismos, do desprezo pela história, da tutela (ou opressão) dos mais pobres, do fim do Estado laico, enfim, de uma irreversível marcha-ré no processo civilizatório. Em breve teremos um criacionista cuidando da educação, um latifundiário tratando da “regularização fundiária” e ideólogos de “fake news” à frente do Itamaraty e da comunicação do governo.

Ah, mas tem o Moro e o Guedes, dirão as velhinhas de Taubaté. 
Sim, eles suavizam a invasão bárbara, respectivamente, com sua toga e com seu entrosamento com mercado. 

O presidente, no entanto, é o capitão...

Marcos Meirelles é jornalista.
Este artigo foi publicado originalmente no jornal "O Vale"


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