José Olympio Barbosa





José Olympio da Costa era o nome do meu avô.

A ele devo, por tabela, meu nome. Hélcio foi o nome que ele escolheu para o filho, que 28 anos mais tarde viria a ser meu pai. Escolheu o nome para alegrar seu irmão, Bóbo, fã do Flamengo e do zagueiro do time da Gávea, Hélcio. Minha avô, Stella, concordou. Assim, José Olympio, torcedor apaixonado do Fluminense, deu a seu filho o nome do craque do arqui-rival. Meu avô era assim, um homem de coração aberto àqueles a quem amava ...

Era um homem determinado.


Até os 15 anos vivia vida de jovem herdeiro. Neto de cafeicultor, estudava com preceptor na fazenda, localizada no interior do Estado do Rio. Quando a família perdeu tudo e, ele, inclusive o pai, foi para o mundo se virar. De herdeiro virou trabalhador braçal, plantando não café, mas dormentes e trilhos de trem pelo mundão a fora. Desde então, os trens entraram em sua vida. E para ficar. Foi operário braçal da Rede Mineira de Viação, fiscal de trem, chefe de estação, chefe de trecho, supervisor ao longo de décadas e décadas. Casou, teve filhos, criou família.  Tinha uma vida simples, sem luxo. Escaldado pelas perdas da juventude, economizava centavos. Menos em saúde e educação para a família. Mandou o filho, Hélcio, estudar Medicina no Rio de Janeiro, empenhando o único bem de sua herança que não virara poeira: um relógio de ouro (que, herdado por mim, anos e anos mais tarde, dei a meu filho mais velho, Guilhermo). Mandou a filha, Vilma, estudar na Europa, primeiro em Coimbra, depois em Toulouse. Brincava, nada mal para filhos de um ferroviário.

Escapou da morte três vezes, uma de emboscada, quando conduzia tropas de burro na região onde nasceu, Conservatória, duas outras de acidente.

Era um homem amado. Minha mãe, Maria Nívia, tinha pelo sogro uma devoção de filha. Foi para mim, além de amigo, um segundo pai, que ouvia minhas histórias, dava conselhos (algumas broncas) e se alegrava quando eu surgia do nada para tomar café com ele e conversar. Me ensinou a escolher carne, a fritar bife (o segredo é deixar a carne macia por dentro) e a gostar de paçoca e goiabada com queijo, que não podia faltar em sua casa. Tinha surdez seletiva: só ouvia o que bem interessava. Gargalhava alto, arrastava os chinelos, discutia política e acreditava que, um dia, Leonel Brizola, ainda seria presidente do Brasil. Em sua terra era chamado de Zé Duarte, em referência ao pai, José Duarte da Costa. Gostava de ler e de dar livros (dele ganhei meu primeiro livro sério, "O livro da Selva", de Rudyard Kipling, aos 7 anos). Mas, sem diploma formal, fruto da educação informal na fazenda, teve que encarar o antigo curso de Madureza para poder se aposentar em um cargo mais alto na Rede Mineira após mais de 35 anos de trabalho. Lembro que eu, aos 9, 10 anos, fazia papel de seu professor de reforço em História e Geografia, em aulas dadas na mesa da sala de jantar de sua casa, noite após noite.

Sempre tive admiração pelo meu avô.

Ele me ensinou, assim como ensinou a meu pai, que a vida é vivida para frente e que nada está perdido se a gente em determinação, força de vontade e capacidade de pensar e trabalhar. José Olympio da Costa me ensinou, como ensinou a meu pai, a pensar por conta própria, a nunca ter medo de falar o que penso e a tratar bem e a ajudar as pessoas. Me ensinou que, quando a gente erra, pede desculpas. E que, quando acerta, não faz alarde. Não precisa. Era um homem simples, justo e bom. Morreu em sua casa de Conservatória, uma casa que não existe mais, perdida no tempo. Morreu dormindo, durante o cochilo que sempre tirada depois do almoço, após cuidar da horta e das plantas, em um dia de sol. Penso nele todos os dias, mesmo que de relance. Afinal, a gente não surge do nada. Somos fruto das pessoas que passam pela nossa vida, das nossas experiências, das nossas crenças e do nosso saber. Meu avô faz parte da minha base, como uma raiz profunda que sustenta uma árvore, que ora resiste, ora balança ao vento. Dele --e do meu pai-- herdei as qualidades. Os erros, esses adquiri por conta própria. A vida é assim ...

Lembrei muito dele assistindo aos jogos da Copa.

Apaixonados por futebol, vimos juntos muitas partidas da Copa de 74 e toda a Copa de 78. De olhos grudados na TV de sua casa, em Cruzeiro, viajávamos para campos distantes, estádios desconhecidos, para novas fronteiras. Costume de anos, meu avô acompanhava os jogos pela TV sem abrir mão do rádio, mais vibrante, apaixonado. Anos depois fui estudar fora e o tempo do café e das conversas com meu avô fiou na memória, como agora. Mas sua presença é constante, como trilhos de trem fincados no solo, cortando campos, serras, paisagens. Aprendi muito ao lado dele, olhando a vida passar do outro lado da janela dos trens da Rede Mineira e da antiga Central do Brasil (como descreve Caetano Veloso, com perfeição, em "Trem das Cores"), indo e vindo, chacoalhando, comendo misto quente e tomando guaraná nos vagões-restaurante ou sentados no fundo da composição, deixando para trás casas, cidades, bichos e gente. O apito do trem calando fundo no coração.

José Olympio Barbosa, esse era o nome do meu avô.
Seu nome ressoa na minha memória, como um apito de trem, e sua lembrança, forjada a ferro e fogo, é como um trilho cortando de Norte a Sul o meu coração.

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