Dentro da Noite Veloz


Neste início de ano, o jornalismo brasileiro perdeu uma de suas vozes mais conscientes e mais talentosas, a de Carlos Heitor Cony.

Uma pena.

Neste ano que tende a ser veloz, empacotado entre Carnaval, Copa e eleições, vamos precisar muito de vozes conscientes para não cair nas armadilhas do fácil, no conto dos espertalhões, nos fantasmas do passado que nunca houve. Por coincidência, citei Cony no último comentário de rádio que fiz em 2017. O cronista não acreditava na magia do Ano Novo. “Ano Novo, vida velha”, disse ele, uma vez. “A vida é bem mais que calendários, fusos e órbitas gravitacionais.” Ele tinha razão, mas em parte. O Ano Novo serve muitas vezes como um momento de reflexão, em que podemos encarar a vida, passada, presente e futura, em perspectiva.

E o que vislumbro desse panorama visto da ponte que nos traz a 2018?

Nesta transição entre o velho e o novo, lembro de um poema de Ferreira Gullar. “Sou um homem comum, de carne e de memória, de osso e de esquecimento. Ando a pé, de ônibus, de táxi, de avião. E a vida sopra em mim, pânica, feito a chama de um maçarico”, escreveu ele, em um verso de “Dentro da Noite Veloz”, seu livro mais político. Nunca precisamos tanto de homens comuns. Chega dos homens extraordinários, que existem apenas na ficção.

O tempo passa e passa rápido, promete 2018. Serão muitos os instantes em que ele vai escapar por entre nossos dedos. Para isso, só tem um remédio: viver, e viver bem cada instante. De volta a Gullar, vida tenho uma só, que se gasta com a sola do meu sapato. E a vida, assim como o tempo, está nos detalhes, na atenção dada a quem se ama, no acaso. Reli no ocaso de 2017 um livro que me é muito caro, “Soldados de Salamina”, de Javier Cercas. A chave da obra, que narra um episódio perdido da Guerra Civil Espanhola, nos anos 30, está no título, que faz referencia a uma batalha travada em 480 antes de Cristo, entre persas e gregos. A vitória grega abriu o mundo a uma era de riqueza e conhecimento. E se tivesse sido o contrário?

Não há como reescrever nem a vida nem a história.
Por isso, sejamos nós a escrever nossa vida e nossa história a cada dia, a cada decisão. Mesmo que estejamos em tempos difíceis, mesmo que estejamos dentro da noite veloz.


Este artigo foi publicado originalmente na edição do último final de semana do jornal "O Vale"


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