Acordes dissonantes

Waack no cenário do JG

Isso é coisa de preto?

Essa frase curta, mas sem o ponto de interrogação, soterrou, assim, no vapt-vupt. a carreira de um dos jornalistas mais talentosos do país, William Waack, âncora do Jornal da Globo ao longo de anos e anos. Afastado das telas em novembro e demitido pela Rede Globo em dezembro, Waack iniciou 2018 se pronunciando pela primeira vez sobre o caso em artigo publicado no jornal “Folha de S. Paulo”. No texto, ele repudia a acusação de racista. "Não sou racista, minha obra prova" foi o título escolhido para o texto. "Durante toda a minha vida, combati intolerância de qualquer tipo – racial, inclusive –, e minha vida profissional e pessoal é prova eloquente disso."

O temporal sobre Waack desabou em 2017, mas não havia escrito nada sobre ele até agora. Estava na minha lista de temas do ano passado, que iriam, hora ou outra, transbordar para 2018. Batata ...

Não conheço Willian Waack pessoalmente, mas acompanho o trabalho dele desde os anos 80, quando ele foi correspondente do “Estadão” na Europa e enviado especial para cobrir a Guerra do Golfo. Acompanhei por seus textos a queda do Muro do Berlim, a desintegração da União Soviética e o  ocaso de Saddam Hussein à frente do Iraque.  Li seus quatro livros. De dois, gosto muito: “Mister, You Bagdá?”, que relata os dias em que Waack e Hélio Campos Melo ficaram em poder da Guarda Republicada de Saddam, sequestrados, e “Camaradas”, em que Waack revela documentos então exclusivos sobre a Intentona Comunista de 35, a partir dos arquivos recém-abertos da antiga URSS. Outro, “As Duas Faces da Glória”, sobre a campanha da FEB na Itália, achei repetitivo e cansativo, embora a obra seja bastante corajosa. Em nenhum dos textos que li ao longo de décadas, nem nas apresentações que assisti dele à frente do Jornal da Globo, houve palavra ou colocação que me tenha soado racista.

Trata-se de um jornalista talentoso, com 48 anos de profissão, varrido em pleno voo por um tsunami gerado a partir das redes sociais.

Em seu artigo, Waack nega ser racista, como disse acima, admitiu que o racismo é uma realidade triste no país (aliás, uma realidade horrenda) e abriu uma discussão importante sobre o embate travado entre grupos da internet e veículos tradicionais de comunicação. "Em todo o mundo, na era da revolução digital, as empresas da chamada 'mídia tradicional’ são permanentemente desafiadas por grupos organizados no interior das redes sociais", afirma. "Estes se mobilizam para contestar o papel até então inquestionável dos grupos de comunicação."No trecho mais crítico do artigo, Waack critica as empresas que sucumbem à pressão, sem citar a Rede Globo. “Julgam que ceder à gritaria dos grupos organizados ajuda a proteger a própria imagem institucional.” E aponta: “Por falta de visão estratégica ou covardia, ou ambas, tornam-se reféns das redes mobilizadas, parte delas alinhada com o que ‘donos’ de outras agendas políticas definem como ‘correto’.”  Finalizando, Waack afirma:  “Tenho 48 anos de profissão. Não haverá gritaria organizada e oportunismo covarde capazes de mudar essa história: não sou racista. Tenho como prova a minha obra, os meus frutos."

Esse é um debate necessário. Terá futuro? Não sei ...

O artigo de William Waack em nada muda o consumado: a demissão, as acusações de racismo, o ódio despertado nas redes, o julgamento sumário. Mas é uma manifestação sólida, de uma voz que precisava ser ouvida acima dessa gritaria toda. Faltou a Waack, no meio do turbilhão, enquanto era apedrejado pelos arautos do politicamente correto, no instante em que era esquartejado nas redes sociais, a sensibilidade para reconhecer a bobagem que cometeu, mesmo em um comentário privado. O racismo é uma chaga que ainda persiste arraigada no Brasil e deve ser combatido, sem tréguas. Waack pediu desculpas. Tarde demais. É um gesto importante, que chega, infelizmente, com atraso. Tomara que o jornalista, talentoso como é, consiga retomar seu Norte. E que seu comentário, fora de tom, sirva de lição a muita gente.

O certo é que vivemos tempos bicudos ...

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