A arte merece perdão?

Muita gente pelada?

Considerado um dos maiores gênios da arte e da arquitetura do mundo, Michelangelo nem sempre foi unanimidade.

Uma de suas obras-primas, o afresco do "Juízo Final", pintado sobre o altar da Capela Sistina, escapou duas vezes de ser destruído por misturar santos e pecadores, por colocar dezenas de pessoas nuas em um espaço sagrado. Foi por pouco. Em 1541, só a intervenção direta do papa Paulo 3 evitou que a reforma de uma capela ao lado, idealizada por Biagio de Cesena, não colocasse a parede no chão, levando junto com o "Juízo Final" obras como "O Dilúvio", "Profeta Zacarias" e suas famosas ninfas. Anos mais tarde, foi um novo papa, Giovanni Caraffa, na pele de Paulo 4, que investiu contra a obra, ameaçando transformar o afresco em uma parede caiada, antecedendo, em séculos, aos arroubos de João Doria. O "Juízo Final" sobreviveu graças a Daniele de Volterra, pintor amigo de Michelangelo, que cobriu com saiotes  a nudez de algumas figuras ...

Pois é, se nem Michelangelo escapou da fúria dos censores, coitado do restante dos artistas do planeta ...

Não quero comparar Michelangelo a nenhum artista da exposição “Querrmuseu – Cartografias da Diferença na Arte Brasileira”, cancelada pelo Santander Cultural, em Porto Alegre, após onda de protestos nas redes sociais, cuja queixa principal era de que algumas das obras promoviam blasfêmia contra símbolos religiosos e apologia à zoofilia e à pedofilia. Michelangelo é incomparável. Mas os episódios mostram que a intolerância, essa velha senhora, ainda insiste em pegar a arte para Cristo.

Vi pouco da mostra e, do que vi, quase nada me interessou, apesar do respeito que tenho por artistas como Adriana Varejão, Fernando Baril, Lygia Clark, Yuri Firmesa. Aliás, a mostra reunia 270 trabalhos de 85 artistas. Algumas obras me pareceram bobinhas, como se a arte tivesse sempre a necessidade de chocar para ser boa. Uma Madona com um chimpanzé no colo? Isso soa muito anos 60 para mim. Aliás, minha memória me avisa que já vi isso antes. Mas a questão central não é o meu gosto pessoal, é a intolerância. Primeiro: o MP de Porto Alegre foi até a exposição e não constatou nada demais  nas obras. Segundo: obras de arte ficam em museus fechados, ninguém é obrigado a contemplá-las. Assim como ninguém é obrigado a ler um livro ruim, folhear revista de mulher pelada ou ver cenas apelativas em alguma novela de TV. O controle remoto e o livre arbítrio são ferramentas essenciais nesses casos. O que me incomoda é ter meu direito de escolha, de ver algo ou não ver, vedado graças a ação de grupos de pressão organizados, escorado em seus princípios, que não são, nem poderiam ser, universais.

Alguém não gostou da mostra? É só não ir ao museu, simples assim.

Anos atrás, a Câmara de Taubaté impôs censura sobre livros didáticos, enxergando neles citações a figura do Diabo. Curioso como sou, li os livros e fiquei com a sensação de que os vereadores leram obras diferentes. Mais recentemente, alguns iluminados tentaram censurar Monteiro Lobato por racismo. Antes disso, freiras deitaram na entrada dos cinemas em São José dos Campos para impedir que pessoas assistissem a “A Última Tentação de Cristo”, de Martin Scorsese, uma obra-prima do cinema. Pior: deitaram lá sem nenhuma delas ter visto o filme. Não sabiam, que pena, que “A Última Tentação” é uma obra sobre a reafirmação do que lhes era mais sagrado, a fé.

Acho que, no quesito da intolerância, estamos regredindo.

Daqui a pouco, alguém desses iluminados, um novo Girolamo Savonarola, com certeza, vai pregar a censura a trechos mais sensuais e violentos da Bíblia. Antes que alguém me critique, sim, eles existem. 

Para mim ainda vale a máxima de Voltaire, de que não concordo com nada com o que você diz, mas defendo até o fim seu direito de dizê-lo. A essa onda de intolerância, prefiro o slogan das barricadas de 68 em Paris, é proibido proibir, replicado por Caetano Veloso em uma música que rendeu uma das mais estrondosas vaias da MPB. Bem, não se vive só de aplausos. Enfim, estou muito velho para abrir mão de um conceito tão arraigado como o da liberdade. E, claro, de um bom controle remoto ...

Este artigo teve sua versão resumida publicado na edição deste final de semana do jornal "O Vale"

Comentários

  1. Também sou dos velhos tempos em que a censura impunha seus pareceres infames. Liberdade de expressão é sagrada. Como você bem disse, vai e vê quem quer. Opinar sobre "o que ouvi dizer" é demonstração de ignorância.

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  2. concordo, Eurídice, em gênero, número e grau ...

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