Strangers in the nigth

Manuel Alceu (Rogério Marques/O Vale)

Não, não era Geraldo Vandré, nem “Pra não dizer que não falei das flores”.
Na Redação do jornal “O Estado de S. Paulo” a música que melhor simbolizava a resistência à ditadura militar na virada dos anos 60-70 era em inglês, cantada por Frank Sinatra.


Quando o censor de plantão chegava toda noite à Redação do “Estadão”, alguém cantava, cantarolava ou assobiava, lá-lá-lá-lá-rá ...

Um mergulho crítico, mas, hoje, bem humorado, nos bastiões da luta em defesa da liberdade de imprensa após a decretação do AI-5 pela Ditadura Militar foi um dos temas da palestra do jurista Manuel Alceu Affonso Ferreira, na abertura do “Fórum O VALE de Jornalismo”, realizado na tarde da última segunda-feira, em São José dos Campos. Um dos mais respeitados nomes do Direito brasileiro na área de liberdade de expressão de pensamento, Manuel Alceu, advogado de diversas empresas jornalísticas, falou por 50 minutos para uma plateia de 220 pessoas, reunidas no auditório do edifício Hyde Park, na zona oeste da cidade.

-- Não dava nem água nem café para ele, na esperança do censor ir embora. Mas não, ele ficava lá, quase sempre com um revólver à cinta – lembrou Manuel Alceu.

Pudera. No final dos anos 60, o “Estadão” foi um dos poucos veículos de imprensa do país a rejeitar a censura prévia. Isto é, a autocensura.

Como resultado, o censor armado na Redação e 1.136 textos retirados nas páginas do “Estadão” e do extinto “Jornal da Tarde”. Para deixar claro que algo estranho estava acontecendo, os jornais não ocupavam com noticiário os textos censurados. Surgiram aí as famosas receitas culinárias e os trechos dos “Lusíadas”, obra-máxima de Luiz Vaz de Camões, publicados em diversas páginas dos jornais do grupo.

-- As receitas do “Jornal da Tarde” faziam sucesso. Quando acabou a censura, muitos leitores pediram a volta delas. Uma inclusive ganhou um concurso da revista “Casa & Jardim”. A receita se chamada “Os Quindins de Iaiá” – disse, arrancando risos da plateia.

Os tempos eram difíceis, mas algumas histórias, engraçadas.  Manuel Alceu lembrou também de um episódio resultante de uma notícia escrita pelo jornalista Carlos Chagas, recém-falecido, sobre o desaparecimento de um médico socialista em Brasília. O caso gerou um IPM, sigla de Inquérito Policial Militar, conduzido pelo 2 Exército, em São Paulo. Chamado a depor e perguntado se ele, Júlio de Mesquita Neto, era o diretor-responsável pelo jornal “O Estado de S. Paulo”, o jornalista, recém-galgado a diretor do “Estadão” após a morte do pai, respondeu de chofre, para espanto geral: “Não, o diretor-responsável é o professor Alfredo Buzaid, chefe dos censores. O que sai e o que deixa de sair no jornal é responsabilidade dele. É a ele que esse IPM deve ser dirigido.”

Resultado?
Outro IPM, agora por desacatado ao ministro da Justiça.

Com o fim da censura, com o esfacelamento da Ditadura, com a Constituição de 88 e com a derrubada da Lei de Imprensa, as coisas ficaram melhores para os jornais?

Em termos de liberdade, sim.
Mas Manuel Alceu faz uma ressalva: antes, as regras eram mais claras para a imprensa. E dispara: “Alguns juízes, poucos, é verdade, resolvem adotar a censura prévia do material jornalístico”, disse, lembrando o caso Boi Barriga, no qual o “Estadão” está sob censura há oito anos, impedido de publicar reportagem citando o conteúdo de um depoimento de Fernando Sarney à Polícia Federal, sobre saques em dinheiro de pelo menos R$ 3,5 milhões relacionados a empresas da família Sarney durante as eleições estaduais de 2006. “Frente a Lava Jato, isso parece brincadeira de criança. Mas a censura ainda vigora sobre o ‘Estadão’.”

Pior: em 2009, o STF manteve a censura por 3 a 2, com votos contra a liberdade de imprensa dados por Celso Beluzzo e Gilmar Mendes. Esse não falha nunca ...

Manuel Alceu ainda discorreu sobre diversas ações judiciais contra imprensa, entre elas o caso curioso de uma atriz que ganhou uma indenização do “JT” após o colunista Telmo Martino ter escrito uma nota informando que ela, a pedido do marido ciumento, usava cinto de castidade. O jornal perdeu a ação. Anos mais tarde, a própria atriz admitiu em um livro de memórias e em entrevistas da TV que, sim, usou mesmo o tal cinto. E o caso de um delegado bravo com a seguinte manchete: “Jegue vai ao DP, mas só o dono depõe”, sobre um delegado que teria exigido ouvir o animal como testemunha.

Ao final, perguntado sobre sua posição em relação à defesa da volta da Ditadura, que pipoca, aqui e acolá, em diversas manifestações no Brasil atual, o jurista foi taxativo:

-- Contra, contra, contra e contra.

Não dá para ter saudade da Ditadura. Mesmo em tempos de turbulência política, econômica e social, a democracia continua o melhor caminho. Obrigado por reafirmar isso de modo tão claro, Manuel Alceu. E segue o baile ...

Em tempo
O Fórum O VALE de Jornalismo, realizado pelo jornal “O Vale”, teve apoio da empresa Matéria Consultoria & Mídia em sua organização. A cada dia, o blog "dois:pontos” vai publicar um resumo das palestras do Fórum. Amanhã, o texto sobre a palestra da advogada Taís Gasparian sobre “Direito ao Esquecimento”. Até lá.



MANUEL ALCEU AFFONSO FERREIRA é um dos mais respeitados nomes do Direito na área de liberdade de expressão e de pensamento. Advogado formado pela Faculdade Paulista de Direito, da PUC, em 1967, integrou os conselhos Estadual e Federal da OAB e também da Associação dos Advogados de São Paulo. Foi secretário de Justiça e Cidadania do Estado, juiz-titular do TRE de  São Paulo e professor da PUC. Atualmente é sócio-titular da “Affonso Ferreira Advogados”. como consultor jurídico e advogado, presta serviços profissionais a diversas empresas de jornalismo impresso e radiodifusão.

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