Fé & Intolerância


O tema parece passado, mas nunca é demais gastar tempo para discutir os limites da censura e do preconceito.

Dias atrás, uma peça que retrata Jesus na pele de uma mulher transgênero atraiu a fúria de um grupo de religiosos, que ocupou o teatro do Sesc em Taubaté e as redes sociais para protestar contra o que considerou uma profanação de alguns valores do Cristianismo.  O espetáculo em xeque, “O Evangelho segundo Jesus, Rainha do Céu”,  dirigido por Natalia Mallo, tendo Renata Carvalho como atriz principal, encerrou a mostra Gênero e Sexualidade.

Não vi a peça e, admito, não tenho interesse urgente em ver.

Dito isso, considero a polêmica interessante, aliás,  didática. Defendo, por formação, a liberdade de expressão. Plena. Ao encenar “O Evangelho segundo Jesus, Rainha do Céu”, Natalia, Renata e a companhia exerceram o direito de expor seu ponto de vista sobre o mundo. Tiveram coragem de mexer em algo polêmico. Parabéns. Ponto. Os grupos religiosos também têm direito a se manifestar sobre o assunto. Ora, liberdade de expressão vale para todos.  Ponto. Erraram, sim, ao partir para ameaças, ofensas e tentativas de intimidação. Vaiar? Isso faz parte, apesar de ter sido um incômodo à parte da platéia que estava gostando do espetáculo.

Aí vale uma ressalva: era um local fechado. Ninguém estava lá obrigado, acredito. Gostou, fica. Não gostou, vai embora. Simples assim.

A intolerância com a arte é um erro.

Tempos atrás, a Câmara de Taubaté protagonizou um ato de intolerância ao submeter quase a julgamento público um conjunto de livros didáticos comprados para uso nas escolas da rede pública. Segundo pais e vereadores ligados a grupos religiosos, quatro obras faziam apologia ao diabo. Os livros em xeque, alguns premiados (como o “ABC Doido”, de Ângela Lago) e distribuídos pela Editora Melhoramentos, sob aval do cartunista Ziraldo, acabaram não sendo de leitura obrigatória.  Que bobagem ...

Bem, não custa lembrar que livros de Monteiro Lobato chegaram a ser queimados na cidade nos anos 40, acusados de fazerem exaltação ao comunismo. O mesmo Lobato que, recentemente, teve sua obra posta na berlinda por pseudo intelectuais de esquerda sob a acusação de racismo. Pobre Tia Nastácia ...

Que fé é tão rasa para ser abalada por uma obra de arte?

Tempos atrás, dois filmes causaram alvoroço no país por mexer com fundamentos religiosos. Um deles, “A Última Tentação de Cristo”, uma obra-prima de Martin Scorsese, baseada no livro de Nikos Kazantzakis. Assisti ao filme após passar por um tapete de freiras, que deitaram na frente do antigo cinema do Shopping Centro, em São José dos Campos, na tentativa de afugentar a platéia. “Como é possível mexer com a figura de Jesus”, bradavam. Não vi isso. Para mim, trata-se de um filme belíssimo, como obra cinematográfica e como obra de fé. Tenho seu DVD e até hoje me emociono com diversas cenas.

Outro foi “Je Vous Salue, Marie”, de Jean-Luc Godard, que fazia uma interpretação livre da vida de Maria nos tempos atuais. Mais polêmica. A obra chegou a ser censurada pelo presidente José Sarney, esse bastião do pensamento de vanguarda, por pressão da Igreja Católica. Para mim, um filme fraco, um Godard –de quem sou fã, seja por “Acossado”, um clássico da Nouvelle Vague, seja por “Elogio ao Amor”—em baixa.
Vi, não quero ver de novo, o que serve para comprovar uma tese: polêmica não serve de atestado de qualidade a uma obra de arte.

Dito tudo isso, parabéns, de novo, a Natalia e Renata, a quem não conheço.


Se a peça era um brado contra a intolerância, ela teve um efeito didático ao mostrar como a intolerância se manifesta aqui e ali, até coberta de boas intenções. Por ironia, a figura central desse debate todo, Jesus Cristo, foi, ela própria, segundo os ensinamentos cristãos ou pela obra de Juan Arías, uma vítima da intolerância e do ódio que tentava aplacar. Estaremos sempre condenados a eles? Espero, do fundo do coração, que não ...

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