De olhos bem abertos

Foto: Vivian Ferraz


Em tempos repletos de fatos tão decisivos, da morte de Fidel Castro à tragédia com o avião da Chapecoense, peço licença a você, leitor, para fugir da pauta.
Faço isso de forma consciente.

Na última semana, em meio ao corre-corre, decretei feriado por 40, 50 minutos para assistir a apresentação de um TCC de uma estudante de jornalismo na Universidade de Taubaté, orientado pelo professor Robson Bastos. O que me chamou a atenção? As fotos, que conheci, aos picadinhos, no breve intervalo de tempo em que trabalhamos juntos. Nelas, Vivian Ferraz revela expressões e sentimentos de gente simples, gente do sertão de Cunha. Ou, da Boca do Sertão, como ela descreve, no título de seu trabalho. Além das fotos, uma surpresa no TCC: boas histórias, de gente como Seu Descalço, que, com mais de 70 anos, nunca usou sapato, ou do Sobrinho da Santa, que guarda a memória da tia, considerada milagreira. Unindo imagens e histórias, a jovem jornalista mostrou uma capacidade: a de enxergar o outro.


Sigmund Freud dizia que quem tem olhos para ver e ouvidos para ouvir se convence que os mortais não podem ocultar segredo algum. Mas é preciso que alguém veja.


E descubra, por exemplo, tão perto das grandes cidades, das fábricas que fazem carros, aviões e progresso, um Vale do Paraíba rural, esquecido, pobre. As histórias de Vivian me fizeram lembrar uma série de reportagens que fiz, nos anos 80, sobre uma disputa de terras no Bairro Alto, nos sertões da Serra do Mar. Ali, andando quilômetros e quilômetros subindo e descendo morros, percorrendo grotões atrás de plantações queimadas e casebres destruídos, vi e ouvi relatos de gente expulsa da terra sob ameaça de morte, em um autêntico faroeste caboclo. Imagens, só guardei na memória. Algumas indeléveis, como da mulher que morreu de tristeza, deitada em uma esteira, em meio às galinhas, após ter sua casa destruída pelo fogo.


A história é escrita nos detalhes. E pelas pessoas.



Em um livro fantástico, “Memória & sociedade: a lembrança dos velhos”, Ecléa Bosi recupera a história de São Paulo nas primeiras décadas do século 20 a partir das lembranças de sua gente. Basta ter olhos para ver.  E interesse em contar boas histórias. Não é essa a nossa tarefa, como jornalistas? Para isso é preciso mais: é preciso gostar de gente, de ouvir, de conversar. De aprender. Estou lendo agora “Berlim: 1961”, de Frederick Kempe, presente dos meus filhos, que trata da construção do Muro de Berlim. Nele, Kempe trata dos líderes, de Kennedy a Khruschóv, mas fala também do cidadão comum. E aí reside o lado mais interessante da história.

Olhos para ver.


Não basta só estar lá. O jornalista Herbert Matthwes, do “The New York Times”, esteve em Sierra Maestra com Fidel Castro antes da Revolução Cubana e viu apenas o que ele quis e Castro deixou, como narra o excelente “O Homem que inventou Fidel”, de Anthony De Palma. Revoluções mudam o mundo. Tragédias mudam o mundo. A queda do avião da Chapecoense, com 71 mortes, ainda vai gerar muitas narrativas. Essa é a nossa tarefa. Estamos cumprindo-a com perfeição? Algumas vezes sim, outras não. Encaixotado pelo tempo e pela crise, o jornalismo sobrevive. Mas as histórias estão aí, para serem contadas, como faz, com dedicação Xandú Alves, repórter do jornal "O Vale". Como fez Vivian Ferraz, com uma foto premiada que a levou de Cunha até a Coréia. De olhos abertos, o mundo é melhor.


Não é tão simples assim. Nem todo mundo consegue.



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