Onde eu nasci passa um rio

Retrato


Minha mãe guardava uma pequena bandeira paulista, dobrada em quatro, como uma peça sutil de resistência.

Era, para ela, uma pequena relíquia.

Esse pedaço de pano colorido permaneceu durante anos escondido no forro de uma antiga maleta escolar, costurado ali pela obra de uma professora, inconformada com a determinação de banir da exibição pública qualquer bandeira de São Paulo, um revide do governo Vargas pela Revolução de 32. “Bandeira da minha terra, bandeira das 13 listas, são 13 lanças de guerra, cercando o chão dos paulistas”, diz o verso de um poema de Guilherme de Almeida. Na voz de minha mãe soou bonito, recitado quando a Maria Nívia de 50 anos encontrou a pequena bandeira escondida pela menina de tranças aos 8 anos de idade. Essa imagem fugaz, de mais de 50 anos atrás, me vem à mente enquanto arrumo coisas antigas na casa da família em Piraju, uma construção de quase 120 anos. São fotos, santos, cartas e livros, imersos em histórias e lembranças. Estou devolvendo à casa parte da memória da menina que, dali, nunca, em seu coração, mudou.

A bandeirinha ainda existe, guardada em uma gaveta.

Imerso na casa imensa, o tempo me parece um mistério, infinito, profundo como o mar tão distante dali, raso em alguns pontos, cristalino, abissal em boa parte,
um oceano que banha de sombras o mundo dos vivos, como entoa Zé Ramalho, cheio de peixes milagrosos, insetos nocivos, paisagens abertas, desertos medonhos. Muitas vezes é preciso ter cautela para não se afogar. Em outras, só a coragem do mergulho nos salva. “Chamai-me Ismael”, escreveu Herman Melville, na primeira frase do romance que melhor evidencia o embate selvagem entre o homem e a natureza, a frase que abre seu mergulho em memórias assombrosas. Que nomes somos nós condenados a carregar nas aventuras que travamos nos labirintos do tempo e da memória? Os nomes simples da infância? Os que adotamos ao longo da vida? Ou dados a nós por outras pessoas, mesmo contra a nossa vontade? A menina da Revolução de 32 tinha Bugrinha por apelido, em razão da cor de cobre da pele, do cabelo preto e liso. Na foto da parede da sala já era Maria Nívia. Em outras, é a professora, a mãe, a avó, separadas por rugas, cabelos brancos, pelo brilho nos olhos, pela roupa usada naquele momento, hoje passado. As dobras do tempo nos pregam peças.

Este é a vez derradeira que arrumo as coisas deixadas por meus pais, levando para a casa da família as marcas visíveis deixadas por eles ao longo de décadas. É sempre uma jornada difícil, feliz, mas dolorida. Qual será o meu nome ao final dela? Qual o significado disso tudo, tempo, memória, sentimentos. Qual o meu nome ao final disso tudo? Às vezes rio, às vezes choro, mas, dele, nunca me perco. Meu nome está gravado na pele com ferro em brasa. Meus pés estão cravados na terra vermelha desta casa e meus olhos miram sempre para frente. Visto daqui, o tempo, selvagem, é um oceano bravio que se choca contra as minhas costas, deixando sal, sargaços e um cheiro forte de saudade. Na vazante, escorre pelos dedos, afundando mais e mais meus pés na terra roxa.

Nele, navegar sempre é preciso.
Viver? Bem, viver já é uma aventura onde se anda para frente, sem nem olhar para trás  ...

PS: O nome dessa crônica foi tirada de uma música de Caetano Veloso, "Onde eu nasci passa um rio".  Seus primeiros versos são: "
Onde eu nasci passa um rio, que passa no igual sem fim, igual, sem fim, minha terra  passava dentro de mim; passava como se o tempo nada pudesse mudar, passava como se o rio não desaguasse no mar." O rio da minha terra tem nome, Paranapanema, e deságua no mar junto com as águas da Bacia do Prata

Comentários

  1. Hélcio você faz as perguntas: Qual será o meu nome ao final dela? Qual o significado disso tudo, tempo, memória, sentimentos. Qual o meu nome ao final disso tudo?, e então, depois de me deliciar co a leveza e encanto desta leitura, diria: Isto se chama "doces lembranças, que enchem o coração de alegria e felicidade". Brasilino

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  2. obrigado pelo comentário sempre amigo, Brasilino. abraço

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