Dois anos sem meu pai

Arroz & feijão

Meu pai nasceu Hélcio Costa. O José foi incorporado depois, exigência de um padre, que não aceitava batizar o menino sem um nome cristão. Como padres eram raros em Conservatória em 1926, meu avô, José Olympio, aceitou. Mas o José teve vida breve. Poucas vezes foi usado, quase sempre por insistência de minha mãe, Maria Nívia, criada em colégio de freiras.

Herdei do meu pai o nome, além da determinação e o gosto pelo simples.

Assim, de Hélcio José da Costa Junior virei Hélcio Costa logo cedo, para desespero das professoras do primário. E assim é, até hoje.

Herdei do meu pai mais coisas: o gosto pelo futebol, a paixão pelo Corinthians, a dedicação à família (composta ela por gente de todos os lados, mais gato, cachorro e papagaio) e o prazer de trabalhar no que a gente gosta, ele, médico, eu, jornalista. Herdei também o gosto pelos livros, o hábito de ler dois ou três ao mesmo tempo (um ligado ao trabalho, outro sobre política ou história, um mais leve, um romance de Jorge Amado, por exemplo) e, mais recentemente, sua biblioteca, com mais de 6.000 volumes, dos mais diversos autores, tendências e o gostos. Herdei o gosto pelo arroz e feijão bem feitos, ele, sem alho, eu, com muito alho. Herdei também o interesse pela política, embora, nesse campo, estivéssemos quase sempre de lados opostos.

Teimosos como éramos, isso nos valeu um longo período de afastamento, na década de 80. Ficamos sem nos falar por quase dois anos, até que minha mãe, inconformada com a briga dos “seus” Hélcios, mediou um armistício, que virou trégua prolongada e, depois, um longo período de paz, nunca mais quebrado. Sempre lamentei o tempo perdido.
Ele tinha orgulho do filho, editor de jornal. Eu tenho orgulho do meu pai, um dos homens mais inteligentes e determinados que conheci.

Neste 22 de janeiro, faz dois anos exatos da morte de meu pai.
E não há um dia que passe sem que eu lembre dele com saudade, admiração, carinho imensos.

Naquele dia, perdi meu pai e perdi meu melhor amigo. Ao me despedir dele, sozinho, ao lado do seu corpo sem vida, passei a mão pelos seus cabelos e me senti o mais solitário dos homens na Terra. Chorei. Um dia antes, havíamos dado tantas risadas na UTI que a enfermeira responsável pelo plantão nos deu um puxão de orelhas. “Tem gente doente aqui, seu Hélcio”, disse. Meu pai fez uma cara de falsa mágoa e arrematou: “Estudei tantos anos para virar médico e agora, dentro de um hospital, ninguém me chama de doutor.”

Doutor era como eu o chamava carinhosamente.
Mais que referência ao médico, era uma brincadeira com o menino pobre, filho de um ferroviário e de uma costureira, que teimou em estudar na Faculdade Nacional de Medicina, na Praia Vermelha.

Ao lado de minha irmã, Maria Stella, cuidei do meu pai nos seus últimos anos de vida, quando ele não podia administrar mais seus negócios, as contas da casa, os cuidados com a sua saúde. Estive com ele nos bons momentos e nos momentos de dor, alguns de dor imensa. Todos deixaram lições e aprendizados. No domingo anterior à sua morte, ele me confessou: “Não choro mais ao pensar na sua mãe. Ela me deu tantas alegrias, que pensar nela agora só me traz felicidade”, disse, superando, de alguma forma, a dor imensa que tivera dois meses antes. Estiveram juntos por mais de 60 anos. “Ela foi o grande amor da minha vida”, acrescentou.

Este domingo será um dia triste para mim. Dia de silêncio, dia de recordações.
Mas aprendi, com o Doutor, que a vida só tem uma direção: para frente. O passado serve para relembrar e aprender. Mas a vida, a vida segue. E nós, com nossas lembranças, amores, medos e desafios, temos que seguir com ela. Mais que relembrar do passado e de quem somos, temos que festejar os que vêm depois.


Obrigado, Doutor. Obrigado, meu pai ...

PS: a foto que ilustra essa crônica foi feita por mim, em nossa casa, em Cruzeiro, em 1966. Ela mostra meu pai se servindo de feijão, num almoço de um dia qualquer. Feita com uma Kodak Rio 400, foi a primeira foto que tirei na vida

Comentários

  1. Sentimento muito parecido com o meu a respeito da perda de meu pai!

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  2. no fundo, nós, seres humanos, somos todos feitos do mesmo molde. abraço

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  3. "Mas aprendi, com o Doutor, que a vida só tem uma direção: para frente. O passado serve para relembrar e aprender. Mas a vida, a vida segue. E nós, com nossas lembranças, amores, medos e desafios, temos que seguir com ela. Mais que relembrar do passado e de quem somos, temos que festejar os que vêm depois."
    Parabéns Helcio Costa pelo belo texto no blog Dois Pontos. Como sempre você foi brilhante nas palavras, traduzindo o sentimento de muita gente que sente saudades de entes tão queridos como os nossos pais, quando já se foram.
    Um abraço.

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  4. Parabéns! Helcio Costa, sou uma sobrevivente com doenças da infância , graças a seu pai- Dr. Helcio, recém chegado aqui em Cruzeiro. Diagnóstico preciso. Hoje aos 65 anos de idade, foi um prazer imenso ler seu texto.

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    1. meu pai era um bom médico, dedicado a seus pacientes. obrigado pela sua lembrança, Rosa. abraço

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  5. Belo texto Hélcio, cheio de sentimentos e que me fez recordar de meu pai, Marcílio. Em maio próximo serão completados cinco anos da partida dele para o plano superior. Tenho muitas saudades do meu velho. Forte abraço.

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    1. grande, Vinagre, que bom que minhas recordações tocaram você. saudade é bom, faz um bem danado. abraço

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  6. Helcio que linda homenagem. Os detalhes na descrição do seu texto faz com que seu leitor sinta a ausência que seu pai faz para vocês e também, a falta que um ente querido faz na vida de nós leitores. Abraços

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  7. olá, Nádia. fico feliz que você tenha gostado.
    escrever sobre isso é difícil, mas ao mesmo tempo muito tocante. abraço

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